Sementes que lembram: seca e pragas moldam a soja do futuro

Memória biológica prepara descendentes para resistir a ameaças, mas reduz o rendimento da safra

15.08.2025 | 14:46 (UTC -3)
Revista Cultivar
Foto: Wenderson Araujo / CNA
Foto: Wenderson Araujo / CNA

Soja tem "memória". Embora não possua sistema nervoso, ela registra eventos de estresse -- como seca e herbivoria -- e transmite respostas adaptativas aos seus descendentes. Sob certa abordagem analógica, estaria Jean-Baptiste Lamarck correto, afinal?

Pesquisas recentes conduzidas na Universidade de Arkansas comprovaram a existência de plasticidade transgeracional na soja. Essa memória biológica não depende de mutações genéticas, mas de mecanismos epigenéticos – mudanças químicas reversíveis que alteram a forma como os genes são lidos, sem alterar sua sequência.

Os resultados dos estudos revelam que o estresse não afeta apenas a planta que o sofre. Ele também modifica aspectos fisiológicos e defensivos das sementes e das plantas que emergem delas.

Mudanças hereditárias além do DNA

No artigo "Drought and Herbivory Have Selective Transgenerational Effects on Soybean Eco-Physiology, Defence and Fitness", os pesquisadores apontam que sementes oriundas de plantas expostas à seca e ao ataque de lagartas germinaram com mais dificuldades e originaram plântulas menos vigorosas.

Por outro lado, essas mesmas plântulas desenvolveram mais tricomas – estruturas semelhantes a pelos – que funcionam como barreiras contra insetos. Os descendentes dessas plantas também apresentaram maiores níveis de nitrogênio e proteína, elementos fundamentais para o desenvolvimento e o valor nutricional da soja.

De acordo com o estudo, "os efeitos transgeracionais foram seletivos, beneficiando alguns atributos ao custo de outros". Ou seja, houve uma troca: maior defesa e qualidade nutricional, mas menor crescimento e rendimento.

Ataques combinados geram memória mais forte

O pesquisador Rupesh Kariyat, entomologista e coordenador do estudo, explica que a combinação de seca com herbivoria produziu respostas mais marcantes do que a ocorrência isolada de cada estressor. "Esses fatores não apenas afetam a planta parental, mas deixam impressões biológicas duradouras nos descendentes", afirma.

A observação parece confirmar-se nos dados. No experimento, plantas submetidas à dupla pressão tiveram descendentes com mais flores, mais vagens, maior teor de proteína e mais tricomas. No entanto, o rendimento final caiu. Vagens vazias e tamanho reduzido da planta foram frequentes.

<i>Chrysodeixis includens</i>&nbsp;- Foto: Manish Gautam
Chrysodeixis includens - Foto: Manish Gautam

Preferência dos insetos expõe as marcas do estresse

Em outro teste, a equipe montou um experimento curioso: conectou, por pequenas pontes, plantas que haviam sofrido seca a outras que cresceram com irrigação normal. Lagartas Chrysodeixis includens (falsa-medideira) foram colocadas para escolher entre elas.

As lagartas mostraram comportamentos sugestivos. Pausavam, examinavam e preferiam retornar às plantas saudáveis. Aquelas que sofreram seca pareciam menos atrativas. O resultado sugere a hipótese do vigor da planta: insetos optam por hospedeiras mais vigorosas e tenras.

Ordem dos ataques muda os resultados

Em "Transgenerational Imprints of Sequential Herbivory on Soybean Physiology and Fitness Traits", outro artigo do grupo, os cientistas investigaram o efeito da ordem dos ataques. Utilizaram duas pragas: a falsa-medideira e a lagarta-do-cartucho (Spodoptera frugiperda).

Quando a falsa-medideira atacou primeiro, seguida pela lagarta-do-cartucho, as plantas-filhas apresentaram 40% mais nitrogênio, mais flores, vagens e proteína. Na ordem inversa, os resultados foram piores. O estudo conclui que "a identidade e a ordem dos herbívoros moldam criticamente as respostas transgeracionais da soja".

A presença de um herbívoro no momento inicial do ciclo pode, portanto, induzir uma forma de "vacina biológica", que prepara a planta e sua linhagem contra futuras ameaças.

Estresse como estratégia agronômica

Essa capacidade de lembrar o estresse leva a uma proposta técnica: o priming ("preparação"). Consiste em aplicar estresses leves e controlados nas plantas jovens para estimular defesas naturais. O conceito é comparado à vacinação: a planta aprende a reagir.

"Podemos manipular o grau de estresse para fortalecer defesas sem prejudicar o rendimento final", afirma Kariyat. Mas alerta: "ainda precisamos definir o ponto de equilíbrio entre estresse benéfico e nocivo".

Essa abordagem pode se mostrar especialmente útil diante de mudanças climáticas que intensificam secas e ampliam o ciclo de vida de insetos.

<i>Spodoptera frugiperda</i> - Foto: Frank Peairs, Colorado State University, Bugwood.org
Spodoptera frugiperda - Foto: Frank Peairs, Colorado State University, Bugwood.org

Custo: mais defesa, menos produção

Os estudos também indicam que plantas descendentes de mães estressadas mantêm suas defesas por pouco tempo. Os tricomas, por exemplo, diminuem com a maturidade.

Além disso, mesmo com mais proteínas, as plantas-filhas produzem menos. O artigo aponta que "respostas defensivas elevadas comprometem a produtividade e a aptidão geral".

No balanço final, a memória de estresse mostra-se uma faca de dois gumes: melhora a defesa e o valor nutricional, mas impõe penalidades no rendimento da cultura.

Relevância para agriculturas com sementes salvas

A maioria dos produtores norte-americanos adquire sementes comerciais a cada safra.

Mas, em outros países, o uso de sementes salvas é prática comum.

Nesses contextos, os efeitos transgeracionais tornam-se ainda mais relevantes. Plantas-mãe expostas a estresse podem transmitir traços que afetam toda a safra seguinte. A seleção de sementes passa a exigir conhecimento do histórico ambiental do lote anterior.

A memória biológica da soja

As quatro publicações científicas produzidas pelo grupo de Kariyat confirmam um fenômeno com alto potencial agronômico. A soja carrega memórias de estresse e as transfere para suas sementes, moldando como elas se desenvolverão.

Essa memória oferece vantagens fisiológicas e defensivas, mas impõe custos. Em tempos de agricultura intensiva e mudanças climáticas, entender como e quando explorar esse mecanismo pode ser decisivo para garantir produtividade e sustentabilidade.

Referências:

  • Gautam, M. & Kariyat, R. (2025). Drought and Herbivory Have Selective Transgenerational Effects on Soybean Eco-Physiology, Defence and Fitness. Plant, Cell & Environment - doi.org/10.1111/pce.70067
  • Shafi, I. & Kariyat, R. (2025). Transgenerational Imprints of Sequential Herbivory on Soybean Physiology and Fitness Traits. Plant-Environment Interactions - doi.org/10.1002/pei3.70070
  • Gautam, M. & Kariyat, R. (2025). Drought and Herbivory Drive Physiological and Phytohormonal Changes in Soybean (Glycine max Merril): Insights From a Meta-Analysis. Plant, Cell & Environment - doi.org/10.1111/pce.15558
  • Gautam, M., Shafi, I., & Kariyat, R. (2024). Compensation of physiological traits under simulated drought and herbivory has functional consequences for fitness in soybean (Glycine max (L.) Merrill). Environmental and Experimental Botany - doi.org/10.1016/j.envexpbot.2024.105944

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